O Nuno Castro não compreendeu ou está de má fé. Infelizmente não sei se as suas intenções são sinceras. Recomecemos do início.
Popper foi quem melhor anteviu a derrocada do iluminismo. Viu que o relativismo se não deixava escancaradas as portas do irracionalismo pelo menos as abria por metade ou um quarto. Ele denunciou o relativismo filosófico, o relativismo histórico, o relativismo moral. Citando Popper: “O relativismo é um dos muitos crimes dos intelectuais. É uma traição à razão e à humanidade.” Não podemos falar de relativismo moral sem começar pelo relativismo filosófico. A essência da filosofia é o que é a verdade. Crime primordial: a verdade é aquilo que a sociedade, a maioria, o meu grupo aceitam. Foi o que a escola nacionalista fez. O iluminismo defendeu uma ordem social pluralista e aberta e defendeu algo diferente dos nacionalistas. Kant disse: “ousa ser livre e respeita a liberdade e a diversidade nos outros, porque a dignidade do homem está na liberdade, na autonomia.” O liberalismo kantiano venceu o conflito ideológico do século XX mas trouxe consigo novos inimigos. Hoje há um relativismo dogmático que emana das universidades assente na certeza inabalável de que todos os pontos de vista são equivalentes ou arbitrários. A ciência ética retira da diversidade de normas éticas a conclusão que as morais são arbitrárias e que o único padrão é de que não há padrões. Isto conduz, na expressão feliz do Ezequiel, ao pluralismo radical ou multiculturalismo, não a uma ordem cosmopolita marcada pela diversidade de culturas, mas a aceitação de uma pluralidade de morais quando as sociedades têm um lastro moral que as torna funcionais. Não se trata de um apelo em defesa do caldo cultural e religioso – embora haja um nexo de conhecimento que chega do passado, passa por nós, e que queremos legar aos nossos filhos – mas não se trata, de grosso modo, do conteúdo mas da forma que o comprime. As sociedades que herdamos do iluminismo são compostas de criaturas estranhas meramente unidas na barca do destino pela obediência a um território e a uma constituição universal escrita sobre o direito natural em que o cidadão é a indispensável âncora. A chegada de comunidades de imigrantes que clamam legitimamente pela sua identidade encontram abrigo sob o manto do relativismo e do multiculturalismo que lhes clama o direito à integração. Convém chamar a atenção para pequenos exemplos. Na califórnia houve há poucos anos a possibilidade do espanhol ser instaurado como primeira língua nas escolas elementares. Issur Danielovitch Demsky, ou Kirk Douglas para o mundo, contestou: “Lá em casa só falávamos idixe. Os miúdos que eram nossos vizinhos de patamar só falavam italiano com os pais. Mas na escola todos aprendíamos inglês. Se assim não fosse, nunca poderia ter sido actor, o que devo ao meu inglês correcto”. O exemplo francês é o exemplo europeu, onde o medo manda e a pedagogia anda de braço dado com a ideologia, os jovens que não falam em casa a língua dos nativos são condenados ao insucesso e às margens da sociedade quando poderiam, a titulo de exemplo, beneficiar de aulas especiais que o acompanhassem no inicio dos estudos no país de acolhimento. A escola espaço de integração, contaminada pelo orientalismo de said, pela desconstrução de Derrida, pelo ataque de Foucault ao pensamento burguês, paulatinamente mostra-se contestatária da identidade dos nativos, da identidade europeia, do “estado-nação”, do direito natural, do progresso, do iluminismo, da razão. O nosso sistema educacional converte-se inextrincavelmente no motor do pluralismo radical, disciplina que divide e encoraja rivalidades tribais e promove a derrocada das escolas em que funda-se o ocidente. O assalto à herança cultural, intelectual e estética não gera qualquer espécie de obediência nova a uma identidade colectiva, sonegando ao enquadramento institucional uma lealdade que a suporte, e abrindo o caminho ao tribalismo e em ultimo passo à tirania. As ciências sociais retomaram a herança dos românticos e dos piores vícios dos nacionalistas e ao abrir de braços romperam as velhas ortodoxias herdadas do iluminismo, e pelas quais os nossos antepassados tombaram. A excisão feminina não é universal entre os muçulmanos, nem todos o praticam, muito menos é uma fantasia xenófoba – onde é que foi buscar este absurdo? Retomo o pensamento. O que está em causa é saber se estamos dispostos a abrir clinicas para executar higienicamente a excisão feminina. Como foi sugerido em Itália. Ou se preferimos punir o pai que rasga as entranhas da sua filha, como se faria com qualquer pai europeu. Lembro que a questão da criminalização passou pelo parlamento português e a esquerda moderna diferiu sob as velhas justificações que faziam marchar os romântico-nacionalistas. Isto é factores culturais. Será aceitável abrir buracos na lei para permitir a aplicação da sharia. Como foi proposto no Canada e acontece oficiosamente no interior dos estados europeus. Será correcto aceitarmos o apedrejamento até à morte, ou o corte das mãos do criminoso, ou a obrigação da mulher encontrar pelo menos quatro testemunhas masculinas no caso de enfrentar a acusação de adultério. Terá a grelha legal tolerar abusos físicos sistemáticos no interior de um casal muçulmano como expressão cultural. Ou que cidadãos, sob o arame farpado da comunidade, conspiram abertamente contra a sociedade de acolhimento. Ou que nos subúrbios das grandes cidades, como acontece em França, que existam bairros onde a lei não vigora e as autoridades recusam a entrar. Ou que haja vários milhões de cidadãos ou residentes que não se consideram abrangidos pela lei do país de acolhimento. Infelizmente isto significa que parte do território e parte da população fica à margem da alçada da lei estatal. Na linha de max weber, ao estado cabe o monopólio da força autorizada ou legitima, e cabe lhe a protecção de quem cai dentro do seu território. Estamos a pôr um fim ao estado soberano e a criar estados dentro do estado protegidos por uma moral substantiva que mora no velho chavão nacionalista de que a tradição, cultura, e comunidade são o fim inquestionável do homem. Quer queira quer não é esta a realidade em vários países europeus.