quinta-feira, 8 de novembro de 2007

dhimmitude

A 11 de Setembro de 2001 entre cadáveres e ruínas fomos todos americanos. No alvor de 12 de Setembro esboçavam-se as primeiras dúvidas. Acaso os norte-americanos não seriam culpados da desgraça que lhe caiu dos céus? Esta reacção insidiosa não ecoava unicamente nas ruas de Gaza e fugia às reacções de júbilo entre as sociedades que exaltam periodicamente pela jihad. Também encontrou espaço nas democracias europeias. Houve comoção e as condolências foram apresentadas, mas em surdina a chacina levou a esquerda radical a aclamar divina surpresa ante esta expedição contra a América, aqui sinónimo de liberalismo. É assim perceptível o ressurgimento do niilismo cínico das correntes marxistas do século passado. Da violência como parteira da história e do velho historicismo que anuncia o fim do capitalismo, neste caso sinónimo de América. Quando começaram a rufar os tambores de guerra a Europa, ainda mergulhada no sonho kantiano de um mundo unido na paz, intimava os Estados Unidos a não desencadear uma guerra cujas consequências seriam sofridas por todo planeta. António Negri chegou a sugerir que o império mobilizava as suas forças militares e policiais para impor ordem aos irregulares e aos rebeldes. Sonegando o direito da América à sua auto-defesa. As vozes mais radicais ante o fanatismo de estirpe islâmica que em 120 minutos ceifara 3000 vítimas, apressaram-se a denunciar a América como agressor embora o que conduziu americanos e uma coligação de países para o teatro de guerra foi o princípio de auto-defesa e sobretudo o extermínio do terrorismo. A mais legitima das razoes. A pergunta é urgente. O que move e agita hearts and minds de uma população maioritariamente urbana e composta por intelectuais e uma massa amorfa que a segue e a recita de cor? A coligação de movimentos que encontra asilo ideológico na turbulência politica das ONG’s, em grupos políticos mediáticos que nunca morreram de amores por “isto”, e na violência saída das ruas de Seattle e Génova, não escondem motivos e aspirações, não se comovem com a democracia liberal, e ainda envenenados pelo ópio do marxismo, aspiram contribuir para a derrocada do capitalismo e a sociedade burguesa alinhando ao lado do Islão radical pois este tem no ocidente a efígie do “mal”. Não propõem uma reforma e nem visam as culturas não-ocidentais, a sua palavra de ordem é “abaixo connosco”.


A nossa civilização expressa desde o iluminismo o desejo de despertarmos do sono dogmático e idealiza valores universais e uma humanidade comum. A despeito de muitos defeitos a democracia liberal e a forma de sociedade em que vivemos no ocidente é o melhor que conhecemos, e em boa parte conseguiu cumprir o iluminismo. Alcançamos níveis de conhecimento extraordinários, carreiras abertas às competências, direitos e liberdades de votar e ser eleito, a ambição económica das massas tornou a pobreza generalizada um problema do passado. O namoro de muitos europeus com o fundamentalismo islâmico vem mostrar que o divórcio com as suas causas tradicionais já é oficial. Pois foi nas guilhotinas francesas, no ideário Kantiano e no racionalismo marxista que a esquerda germinou.


Recuemos ao passado. Após a segunda guerra mundial fracção da população e de partidos políticos, e de uma maioria de intelectuais, simpatizava com o comunismo e embalava o berço em que o marxismo cultural cresceu. Da parte destes grupos, campeava o desprezo à democracia capitalista e a mais diabólica das suas encarnações – a América – e as críticas azedas ao ocidente faziam prever o recuo do iluminismo sem o recurso à violência. Todas as quimeras revolucionárias tiveram o seu apogeu em meados da segunda metade do século XX. Com os postais escatológicos de Fidel e seus barbudos descendo da Sierra Maestra, as guerras de libertação, do martírio de Che na Bolívia, da revolução cultural de Mao, à queda do fascismo a marcha da história encaminhava-se para o paraíso socialista. Foi neste período que faculdades e jornais, tomadas pelas vanguardas revolucionárias, levavam ao mundo a verdade sobre o mel e o leite da terra prometida. A redenção era clara e a escolha simples: Leninismo, Castrismo, Maoismo. A fabrica socialista foi farta em abundância: bons poetas, antropólogos interessantes, grandes artistas e exímios escritores, mas pensadores pouco terrenos, doutrinadores escassos na coerencia e tantos ideólogos em discordância perpétua com a objectividade histórica e o pragmatismo. Nesta época a cartilha de um marxismo elementar ministrava uma explicação fácil e plena do mundo e da História. Tudo ficava devidamente explicado pela luta de classes. A História avançaria inexorável do feudalismo para o capitalismo, e do capitalismo para o socialismo – antecâmara de uma sociedade realmente igualitária que não era menos do que o reino dos céus. Para muitos a idolatria pelo marxismo e por arrasto por Castro ou por Che Guevarra não seria efémera, mas perene. Foi igualmente nesta época que o casal Rosenberg enfrentou pena de morte, por, como se veio a provar, espionagem ao serviço do Komintern. A esquerda como não podia deixar de ser reagiu em histeria, plena de conteúdo e aclamando “vêm o que o liberalismo faz!”. Foi também neste período que a união soviética apontou ás cidades europeias centenas de humanitários e indulgentes mísseis dotados de ogivas nucleares de alcance médio. Nenhum pacifista se manifestou, pois os “amigos da paz” jamais foram coerentes nos actos e ideias. A Nato ante o avanço soviético não teve outra escolha que não garantir a dissuasão apropriada instalando mísseis Pershing II – esses sim infames e odiosos. E foi a esquerda, a quem as armas que metem medo não são aquelas que os visam mas aquelas que os protegem, que se instalou nas ruas e praças e se mobilizou em manifestações maciças para lutar pela paz contra a guerra, protestar contra a instalação de mísseis e o imperialismo americano – pois o soviético era só filantropia. Os amigos da humanidade e os activistas ideológicos podem ter arrecadado os tambores e os slogans mas desde então retomam-nos sazonalmente para se colocarem objectivamente a favor de quem os ataca. Os “compagnons de route” que Lenine apelidava de “idiotas úteis” desempenhavam o seu papel. Como ignorar o servilismo moral de artistas que se punham de joelhos ante o marxismo? Lembro o caro leitor do os “massacres na Coreia” pintado por Picasso, onde os soldados americanos, os eternos maus da fita, fuzilavam crianças e mulheres. Recordo-me de Lennon que a certa altura passou a devotar-se menos à musica que a declarações fátuas e inócuas sobre o Vietname, a politica e a paz, nos termos exactos em que a esquerda polida e engomada ainda agora versa. A estulticia é vitalícia e impermeável à razão.


Perante a lancinante regressão do socialismo, o cataclismo que o acompanhou, a miséria que este espalhara, em 1989 o muro de Berlim desfazia-se sob os golpes dos povos oprimidos. Desaparecido o comunismo na antiga união soviética e na Europa, arruinada a ortodoxia Cubana ante a urgência de dar um pouco de oxigénio capitalista à moribunda economia Cubana, fracassadas as experiências africanas sem não deixar o continente num estado de miséria total, naufragado sob o peso de seus erros monumentais o exótico socialismo latino-americano, ferida de morte a fantasia maioista na praça de tianamen, o próprio Vietname comunista convertido à fé da economia de mercado e adorador do vil metal, uma Coreia do Norte exangue e dependente da ajuda capitalista para alimentar o seu povo, os idealistas, os progressistas da escola economicista, e os desordeiros que os acompanham, erram no deserto em busca de novas latitudes. Hoje quase ninguém acredita no controlo da produção, na nacionalização da banca ou na agonizante luta de classes. Mas ficou o azedume. Pior, ficou a casca. Ante a marcha dos exércitos no campo de batalha, o amanhecer de um novo conflito que põe o iluminismo diante do irracionalismo, o tribalismo, o sentimento, o alvor de uma guerra pela civilização, a esquerda radical asila-se de bom grado no braço que aponta o caminho da jihad global. Alguma esquerda passou a viver em união de facto com os agentes do terror. Recordo Nadia Lioce, antiga membro das brigadas vermelhas: "Estamos solidários com a Al-Qaeda e o que se passa no Iraque é uma perspectiva histórica da frente combatente anti-imperialista.“. Chamo a atenção para as palavras de uma figura conhecida da esquerda pátria: “Hoje somos todos do Hezbollah”. Amir Taheri, um refugiado iraniano, explica: a “esquerda europeia encara os muçulmanos como os novos proletários do continente” e que a sua “ideologia se constrói hoje em torno de 3 temas; o ódio aos EUA, o ódio aos judeus e a esperança de colapso do sistema económico mundial”. As presas justificam o seu amor aos predadores. Quem ainda não ouviu que a causa do terror não é de modo algum o irracionalismo religioso? Como podia ser, acaso não são as forças produtivas e as relações de produção que mexem a história? Pois o terrorismo não emana da pobreza que o capitalismo espalha pelo mundo através da globalização? E quem a orienta, não são os Estados Unidos? A desonestidade não vive de factos. A historia jamais impediu a progressão da perspectiva néscia e delirante quando se alicerça na ideologia e abrigada na ignorância. Segundo os opositores da globalização e a constelação de movimentos que forma a esquerda, os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, e para quem a riqueza é um jogo de soma zero, equivale a concluir que a riqueza de uns é a pobreza de outros. São as velhas melodias que Marx alegremente trauteava e que conduziu à mitologia e à deificação do “povo” e da sua “vontade”. Escusado seria relembrar no que isto terminou: regimes abominavelmente repressivos, onde campeavam as prisões arbitrarias, as execuções sumarias e os extermínios em massa, e, ponto primordial, no fracasso em fazer recuar os índices de pobreza, igualando meramente a humanidade por baixo, miseravelmente rente ao chão, obrigada a viver das migalhas que caíam das torres de marfim. Pois olhassem para ocidente, em uma geração conseguiu vencer a pobreza enquanto problema social debaixo de regimes livres que souberam despertar nas massas necessidades e a ambição de posse. Pormenores que não aborrecem nem abalam as hiper-consciências. Órfã e ressentida pela derrota, os seus anátemas continuam a ser a América, o capitalismo, o mercado, e a sua obsessão leva-os com demasiada frequência à compreensão do comportamento e apoio descarado de ditadores homicidas, terroristas niilistas ou grupos religiosos que insistem em viver na idade media. Pois se as suas vozes acusam o ocidente só podem estar certas. Se a sua sanha é contra o ocidente então terão o nosso apoio. Se o ódio tem o ocidente como alvo neles depositaremos a nossa fé. Tal como Hitler teve o apoio dos comunistas britânicos que preferiam estar contra um governo democrático, o terror selvático e o seu troar apocalíptico nas ruas ocidentais soa sempre melhor aos princípios da democracia liberal, a economia de mercado, a igualdade formal, o estado de direito, a liberdade individual de frequentarmos uma discoteca ou abrirmos o livro que nos aprouver sem temer a ortodoxia. Mesmo que isto ponha em causa valores universais aos hemisférios políticos – que se dane a igualdade entre géneros, que se quilhe o estado secular – o que importa é combater o ocidente. A todo o custo. Este bando de irresponsáveis assim que o terrorismo global se abateu sobre o coração do ocidente celebrou a al-qaeda, aclamou esta nova afronta ao ocidente, aplaudiu em surdina “o reino dos céus”, pois juntava-se à luta dos adversários da globalização e vinha pôr um termo aos fogos do inferno neoliberal. Os poucos textos e princípios que regulam a marcha sanguinária dos inverosímeis recalcitrantes da globalização não deixam espaço para ilusões nem muito menos para eventuais soluções politicas: “[A missão do terrorismo] consiste no derrube dos regimes sem Deus, substituindo-os por um regime islâmico”. Afirma Bin Laden. O que os suicidas censuram aos ocidentais, e sobretudo aos americanos não é o facto de viverem em opulência nem a pérfida globalização, é o triunfo da sociedade sem Deus e a ímpia arrogância que erradicou sem piedade uma vida de devoção. Não é um grito de desespero dos famélicos da terra. Pois então a luta seria subsaariana. O terrorismo justifica-se porque atinge infiéis que recusam o Islão e reprova à luz do Islão qualquer princípio de compromisso como mero agente do diabo. Não se trata minimamente de uma reforma da globalização liberal ou muito menos de um projecto político que visa a recessão da pobreza, é um chamamento implacável para a guerra contra o carácter laico da modernidade e a sua componente moral dos direitos do homem. Que esquerdistas, a arder em retórica, afirmem que a guerra no Afeganistão é a linha da frente da futura liberalização do mundo, como fez uma organização alter-mundialista, demonstra até que ponto encontram-se desviados dos factos e absorvidos pela toleima, não compreendem minimamente, nem ao de leve, nem nada, o que lhes acontece diante dos olhos e ao alcance dos ouvidos, a luta do Islão não se faz a favor do que é material, mas sim contra. A meta a que se propõe é inegavelmente fruto de uma demência, mas é mesmo a destruição da civilização ocidental, porque faz sombra e não se submete ao Islão.


O Islão, que muitos erroneamente traduzem por paz, significa submissão. É uma religião temperada pela agressão ao infiel, inspirada por um texto sagrado que não reconhece nenhuma estrutura humana de cariz jurídico e concretizado num conjunto de leis invioláveis e inalteráveis. A soberania pertence a deus e ao seu profeta, e a ordem legal emana da verdade revelada. É uma religião que acompanha o ser humano desde o momento que nasce até o seu leito de morte, com um elo de cariz contratual que não o desvia por momento algum da charia e das máximas do Corão que contemplam uma zanga sem fim com o outro que se nega a embarcar no sonho colectivo. Não estamos exclusivamente diante uma religião, mas acima de tudo uma ideologia, tal e qual o comunismo, mas infinitamente mais pessoal e assente no transcendental. Cujo conceito de bem não corresponde de forma alguma ao conceito de bem da nebulosa esquerdista. Uma fé que só obriga os crentes a dispensar bondade aos seus iguais na fé. Que façam profissão de fé que o Islão é tolerante e moderado, instintivamente benigno e naturalmente pacifico, portanto, um aliado, conta muito como se encontram aparentemente desligados dos factos e imunes à razão. Que assumem o simulacro de um Islão infinitamente indulgente perante quem não lhe presta obediência, leva a crer que tomam todo o auditório por imbecis. É uma retirada curiosa para uma cidadela interior. Um fechamento espiritual e intelectual imune às luzes e que convida às trevas. Pois o disparate facilita o caminho e entreabre as portas aos inimigos das sociedades seculares e liberais, assentes no direito e na igualdade perante o império da lei escudada numa cultura pública que encerra a ideia de cooperação entre cidadãos livres e iguais. Basta ouvir quem melhor conhece o Islão: os seus crentes. Enquanto os cadáveres e os destroços das torres gémeas ainda arrefeciam muçulmanos jubilavam cheios de tolerância e moderadamente nas ruas de França, vamos escutar: “esta noite vou festejar porque não considero esses actos como um crime. São feitos heróicos. É uma lição para os Estados Unidos. E vocês, franceses, vamos rebentar com vocês todos”. Palavras instrutivas e plenas de sabedoria na mesma proporção ao seu fino recorte literário. Em Outubro de 2001 podia ler-se num cartaz em Luton: “o Islão dominará o mundo” Será isto a famosa tolerância e moderação muçulmana? E as seguintes suras, certamente prosa tolerante e moderada que levaria Bob Geldof ou o professor Boaventura de Sousa Santos a dilatar-se de orgulho? "E matai-os onde quer que os encontreis. E expulsai-os... matai-os [cristãos e judeus]. Tal é o castigo dos descrentes" (Sura 2.191). E a próxima: “ Se virarem as costas e se afastarem, capturai-os e matai-os onde quer que os acheis. E não tomeis nenhum deles por confidente ou aliado... capturai-os e matai-os onde quer que os encontreis, porque sobre eles vos concedemos poder absoluto" (Sura 4.89,91). Mas não fiquemos por aqui: "Devereis combatê-lo [os não-muçulmanos, os judeus e os cristãos] até que se submeta ao Islão" (Sura 48.16). "Matai os idólatras onde quer que os encontreis " (Sura 9.5). Suras deste calibre são o manto de desculpas que veste o suicida-bombista. Também há na bíblia prosa igualmente preocupante e susceptível de erguer a sanha do crente, mas os cristãos guiados pela bíblia não sentem o dever celestial de aplicar o labor punitivo de deus. Escusado será dizer, malogradas as tentativas de edificação de uma ordem social inteiramente animada pelo espírito e elogio do perdão de Cristo ou no amor ante o próximo, nem sempre os cristãos cumpriram esse ideal. Mas houve o necessário acto de contrição histórico por parte do Cristianismo. Porquê jamais tenhamos ouvido falar de uma manifestação de moderados muçulmanos contra a barbárie genocida que caracteriza o terrorismo islâmico, quer em solo europeu quer em solo muçulmano? Não será que se deve ao facto de estarem, pura e simplesmente, em minoria, e temerem represálias que podem significar em algumas partes do globo o assassinato? Lembro-vos o caso de, embora não sendo muçulmano, Theo Van Gogh, tolerantemente aniquilado por moderadíssimos seguidores do profeta. Recordo-vos Ibn Warraq, porventura localizado, em sinal da infinita misericórdia de quem diz agir em nome de deus, seria humanamente abatido. Evoco o nome de Salman Rushdie cujo martírio tem sido marcado por periódicas manifestações, embora indulgentes e humanitárias, de apelo ao seu assassinato. Sublinho o nome de Hirsi Ali que pela sua posição imoderada e intolerante a forçou ao abandono da celestial Europa em direcção ao mar de enxofre norte-americano. Chamo à atenção para a bondosa fatwa ordenando a morte do presidente Musharraf do Paquistão. Assumo que esta posição do Islão não é universal e foi alinhavada no decorrer das últimas décadas. Que tal como o fascismo tem de ser enquadrado na atmosfera de reacção ao pensamento europeu do início do século XX contra a democracia e o liberalismo, o Islão militante tem de ser enquadrado numa guerra de retaguarda norteada por aqueles que se sentem aterrados ante a modernidade, não exclusivamente perante o cardápio liberal – que é o horror dos adversários da globalização – mas o seu carácter moral e universal. Embora o Islão seja perene e imutável, o carácter e o temperamento dos homens não o é. Louvemos todos os muçulmanos que se opõem ao delírio que lhes afecta tantos correligionários.


A guerra dentro da qual todos nós já estamos será pela organização pré-politica dos povos. E isto merece um pouco da nossa atenção. Passo a desenvolver. Platão questionou-se “quem deve governar?” Resposta foi a minoria. O argumento não é quantitativo. O critério é qualitativo. Reescrevendo a resposta, quem deve governar são os melhores. E os melhores são aqueles que, plenos de virtudes, renunciam aos seus interesses privados e visam o social. Vamos desaguar na aristocracia e no filósofo-rei. Pelo contrário, a resposta de Rousseau foi no sentido inverso: “é a vontade do colectivo que deve governar – a vontade da maioria e não da minoria”. A resposta foi perigosa e pôs Marx a caminho de um universo infernal de tiranias. Retorquiu Marx: “Deve governar a maioria, e não a minoria. Os proletários e não os capitalistas”. Ditosamente a resposta em que nos revemos e que se concretiza na democracia liberal é na decisão expressa pelo voto ou pela eleição, isto é, pela participação do cidadão nos assuntos da administração, método que permite a tomada de decisões sem derramamento de sangue e com um mínimo de restrições de liberdade. O Islão logrou igualmente uma resposta. Dada a cronologia, o Islão precede os grandes filósofos do iluminismo e foi absorver a rígida arte politica tal como os gregos haviam-na meditado. Estriba-se no primado da revelação, e concebe um estado fundado na profecia e administrado pela incontornável e definitiva charia. A réplica do Islão funda-se na verdade revelada, e afirma prosaicamente que não cabe aos homens o seu dirigir, mas a deus. Assim fundada exclusivamente em preceitos de fé, o muçulmano deve trabalhar continuadamente para a edificação do governo de deus na terra, outorgando todo o poder e toda a autoridade ao mensageiro de deus, excomungando quem recusa o Islão e quem se apoia na lei humana. Num universo onde a autoridade definha sob acção dos princípios ocidentais, perante uma ordem que oferece alegremente liberdades e direitos que não encontram eco no livro sagrado, ante o primado dos direitos humanos e o seu esgar monstruoso de um universo secular, num momento critico que o dar al harb se encolhe ante o mal absoluto, chegou a altura de evocar todos os demónios que habitam a alma humana e partir para a guerra.


A cidadania ocidental emana a partir das respostas à questão formulada por Platão, pelo império da lei nos assuntos públicos, e pela liberdade e tolerância na vida privada. No ocidente somos todos criaturas estranhas meramente unidas na barca do destino pela obediência a um território. O indivíduo movido por uma visão de uma casa comum como um lugar de indulgência, comunhão e boa vontade, consagra a sua fidelidade não exclusivamente ao território mas também a quem o partilha consigo, tanto em paz como em guerra, tanto com os mortos como quem está por nascer. O cidadão é assim a indispensável âncora da ordem social a ocidente. Mas a chegada de comunidades de imigrantes que remetem toda a sua lealdade para uma ordem celestial veio incendiar as velhas fidelidades europeias ao estado-nação – desde de sempre condicionado à convicção e firmeza do sentido público dos cidadãos, sob castigo de se converter num campo de batalha de interesses concretos – acicatando antipatias de parte a parte. Sobretudo dos primeiros aos últimos que se definem tácita e terminantemente como antagonistas da lei do homem e ao domínio da liberdade a que os últimos na teoria se submetem. Assim temos elementos que gozam de todos os direitos e privilégios da cidadania e que conspiram abertamente e com a complacência das autoridades contra as sociedades que os acolhem. Como se viram nos atentados em Espanha ou Inglaterra. Larga parte da inteligência europeia, contaminada pelo vírus do pós-modernismo, mostra-se igualmente antagonista da “identidade nacional” e do “estado-nação”, argumentando em delírio que estas são racistas. A própria História nacional, a identidade cristã e o desenvolvimento da civilização ocidental, apodadas de grotescas, estão em franca recessão nos livros que formam os futuros cidadãos e encaminham-se fatalmente para o baú do esquecimento. Em vez disso, o nosso sistema educacional converte-se inexoravelmente no motor do multiculturalismo, disciplina que divide e encoraja rivalidades tribais e promove a derrocada das escolas em que funda-se o ocidente. O assalto à herança cultural não gera qualquer espécie nova de obediência a uma identidade colectiva, destruindo apenas a dos nativos em prol da dos imigrantes, sonegando ao enquadramento institucional uma lealdade que a suporte, e abrindo o caminho à tirania. Não estamos perante vinho velho em garrafas novas, mas uma nova forma de coligação de inimigos. E o alvo, involuntária ou voluntariamente, é a organização pré-politica dos povos europeus. As velhas ortodoxias herdadas do iluminismo, e pelas quais os nossos antepassados tombaram estão na linha de fogo e com os mais improváveis inimigos: os nossos concidadãos. Se o caminho não for invertido, voltaremos a cair na tirania, na censura, nas perseguições e finalmente no holocausto. A barbárie nunca se encontra distante da civilização. Eis ela entre fronteiras.