sábado, 29 de setembro de 2007

Guia-nos Boaventura

Nuno Castro aborreceu-se com Rui Tavares. O motivo da zanga? Rui Tavares “termina um dos mais recentes [artigos] que versa sobre a imigração com um sinistro “sentir-se português”.” Compreendo o incómodo de Nuno Castro, entendo o desconforto de Rui Tavares. Temos de recuar dois séculos e conhecer a voz de quem segue ao leme do nacionalismo alemão. Abram alas a Fichte. O mestre, o profeta, o filosofo da escola romântica, e é com a elegância dos mestres, a eloquência dos profetas, a paciência dos filósofos, que celebra a sociedade, o grupo, o colectivo, a raça, a nação nos quais o individuo decompõem-se e pelos quais marcham. O individuo é o jarro que o colectivo preenche. O que é o homem senão o barro que a marcha da moral molda. O papel do individuo é prestar homenagem à sociedade da qual emana. Fichte não morreu em 1945 com a queda do nazismo. Fichte está entre nós, idealista e entoando o hino laudatório à “nação”. O que é a nação senão a cultura, a tradição, a memória. Avisa quem quer ouvir, a submissão, o sacrifício, a obediência ao super-eu, ao cosmos que pariu o nosso corpo, ao banco cultural credor da nossa alma, não é privilégio, é dever. Vivemos dias marcados por um novo nacionalismo. Um nacionalismo que aparece entre as bandeiras ao progresso. O multiculturalismo. O multiculturalista, herdeiro dos movimentos socialistas, já não habita a casa do socialismo economicista, vive sob o tecto do reaccionarismo cultural. O multiculturalista vê no imigrante, não um novo cidadão igual aos demais cidadãos, mas o refugiado. Não um individuo do qual lhe pedimos deveres e a qual lhe prestamos direitos. Não um novo membro da comunidade. Não o cidadão obediente à constituição. Mas uma nova comunidade. Um novo substrato moral. Uma nova civilização. Um novo corpo de leis. A mão orgulhosa de Fichte a partir da tumba acarinha o filho do seu ventre. Tal como os românticos de outrora, os multiculturalistas clamam pela defesa das culturas naturais perante a marcha abjecta da civilização mecânica. A civilização que destrói a pureza, que amassa o genuíno, que viola os castos. Não é o imigrante o átomo insignificante da comunidade a que pertence? É só uma peça do relógio comunitário. E o que é a razão que ecoa no ambiente institucional senão a voz da civilização liberal? Nesta caminhada a bandeira já não é o operário ocidental, é a manifestação cultural que brota da comunidade imigrante. Esperemos então que Boaventura de Sousa Santos nos guie pelas trevas do iluminismo até à terra prometida.